quarta-feira, maio 15, 2013

O gnosticismo pop está à frente dos gnósticos?


Vinicius Aldino, instrutor gnóstico (?), fala em uma emissora de TV no Rio Branco, Acre, sobre gnosis e o workshop “Meditação e Qualidade de Vida”. Para esse blog, acostumado com as representações da gnose e do Gnosticismo nos chamados filmes gnósticos como momentos radicais de iluminação espiritual que levam ao questionamento não só do status quo mas também daquilo que entendemos como “realidade”, surpreendeu a fala de Aldino: a meditação, como ferramenta para alcançar a gnosis e, ao mesmo tempo, melhora da concentração e eficiência profissional e dos afazeres do dia-a-dia, o que contraria toda uma filosofia historicamente herética, perigosamente aproximando-se das técnicas terapêuticas de autoajuda. Será que, paradoxalmente, o gnosticismo pop está à frente da própria prática gnóstica atual? Ou será que estamos enganados e Aldino pretende, na verdade, colocar um “Cavalo de Tróia” no interior do imaginário das técnicas de autoajuda?

Para aqueles que pesquisam o renascimento atual do Gnosticismo na cultura pop, como faz esse blog particularmente com o Cinema, a gnose dos protagonistas das narrativas ficcionais e toda a mobilização de simbologias e temas do esoterismo e hermetismo em filmes são encarados como decisivos momentos de autoconsciência e iluminação espiritual que desafiam sistemas opressores e explodem com aquilo que chamamos de “realidade”. Momentos de virada e transformação não só de personagens na ficção, mas, potencialmente, com os próprios espectadores desses filmes gnósticos. Apesar de serem filmes comerciais dentro dos preceitos dos gêneros hollywoodianos, eles virtualmente podem incutir a desconfiança em relação a instituições, expressar o mal estar da nossa cultura e a crítica.

Paradoxalmente, parece que esse renascimento pop do Gnosticismo apresenta um ímpeto mais transgressivo (e por isso fiel à sua história como tradição filosófica herética) do que o dos próprios gnósticos.

Pois nesta semana recebi um link com uma entrevista dada por Vinicius Aldino para uma emissora de TV em Rio Branco, no estado do Acre - veja o vídeo abaixo. O gancho da entrevista era um workshop que Aldino daria no Sesc local sobre técnicas de relaxamento e meditação. A introdução da entrevista feita pela apresentadora era essa: “saiba como melhorar a qualidade de vida sem gastar dinheiro. Quem explica como é Vinicius Aldino, instrutor gnóstico (?)”.


De início a expressão “instrutor gnóstico” soou para mim como uma contradição de termos. O termo “instrutor” sempre me pareceu carregado de uma conotação de gestão, recursos humanos, treinamento e administração. O que teria a ver o gnosticismo com todo esse imaginário de gerência de recursos? Bom, poderia ser implicação minha...

Gnosis: conhecer o conhecimento universal
depositado em nós
Vinicius Aldino começa com uma ótima, didática e concisa definição do termo gnosis: “sabedoria universal que está depositada na consciência humana”. Em seguida fala do tema de seu workshop: “meditação e Qualidade de Vida”. E qual a relação da gnosis com “qualidade de vida”? Novamente pensando que esse termo também está impregnado com um imaginário terapêutico de cura, produtividade e todo um ideário que tangencia com autoajuda, pensando a vida como uma questão de gerenciamento e logística. Mas até aqui eram apenas impressões subjetivas minhas, e poderia estar enganado.

Ele fala dos benefícios da meditação: (a) saúde e eliminação do estresse aliviando das tensões do dia-a-dia de trabalho e estudos; (b) melhora da capacidade de concentração no trabalho e tarefas do dia-a-dia e (c) conhecer a si mesmo o que permite “questionar a nós mesmos o que estamos fazendo aqui” para termos clareza do que queremos na vida no aspecto familiar e profissional.

Para Aldino, a meditação é a gnosis na prática, pois permite silenciar o pensamento e conhecer esse conhecimento universal depositado em nós, embora desconheçamos.

A tradição Gnóstica subterrânea


Para quem está acostumado a entender o Gnosticismo e seus derivados esotéricos como uma tradição que historicamente nunca fez parte da cultura sancionada pelas instituições e sempre sobreviveu por meio de canais subterrâneos, é estranha essa correspondência entre gnose com a meditação como técnica de melhorar a eficácia no trabalho, eliminar “sentimentos negativos” resultantes do estresse e trazer uma confortável sensação de “paz e harmonia” que traga “clareza ao aspecto profissional”.

Blavatsky e a Teosofia: o
descontentamento com a vida
prosaica e busca de estados
incomunsde consciência
Desde o triunfo do cristianismo ortodoxo após Constantino, a tradição gnóstica entrou para o subterrâneo dos movimentos sociais. Bem sucedido em seus canais subterrâneos, eventualmente ofereceu a pensadores revolucionários subsídios importantes para críticas aos sistemas opressivos políticos, sociais ou culturais. Esse amalgama de pensamento esotérico com o trabalho contra- cultural trouxe a tradição gnóstica para a política.

O Iluminismo, por exemplo, foi um desses momentos em que os componentes da tradição gnóstica se encontraram. Filósofos cosmopolitas por volta do século XVIII como Voltaire (de forma implícita seus contos mencionam em tom favorável conhecimentos gnósticos) e Goethe (explícito praticante de disciplinas esotéricas como a alquimia) passam a contestar a hegemonia do Cristianismo e da Igreja Católica. A predisposição ideológica contra cultural desses pensadores encontra nas ideias gnósticas subterrâneas a fagulha que faltava para incendiar críticas e insatisfações em relação à antiga ordem.

O descontentamento coma vida prosaica e a busca deliberada por estados incomuns de consciência trouxe todo o movimento de renascimento do Gnosticismo no Romantismo nos séculos XVIII e XIX (Blake e Shelley, por exemplo, bebendo em fontes qlquímicas e cabalísticas para desafiar o status quo) e na Sociedade Teosófica de 1875 de Blavatsky.

Para todos eles a gnosis representava uma radical forma de iluminação e transcendência por dispensar qualquer forma de religião institucionalizada ou hierarquia: tudo o que precisamos já estaria dentro de nós mesmos e, para descobrirmos não eram mais necessários mestres ou elites com conhecimentos herméticos.

A Sociedade Teosófica tornou o gnosticismo acessível ao público fora da academia, o que preparou o caminho para o gnosticismo de massas do século seguinte cujos filmes gnósticos no cinema comercial é a última onde desse esoterismo popular.

A gnosis no gnosticismo pop


Nesses filmes a gnosis parece ter um forte componente político, pois a sua consciência leva a um questionamento de poderes e instituições. Em filmes como “Vanilla Sky” (2001) ou “O Pagamento” (Paycheck, 2003) a experiência da queda (literal em ambos os filmes como simbolismo do “salto de fé”) e a gnosis como esvaziamento da mente e da racionalidade (a meditação de Aldino) implicam em um confronto com instituições e poderes de cosmos físico - em "Vanilla Sky" o confronto com a corporação Life Extension e em O Pagamento a luta contra a conspiração da empresa Allcom.

E se partimos para a gnosis como resultante da ascese e disciplina temos no filme “Clube da Luta” (Fight Club, 1999) o exemplo de um violento despertar para a consciência do mal-estar e hipocrisia dos valores de uma sociedade de consumo – “você compra o que não precisa, com dinheiro que você não tem para impressionar pessoas que você não gosta”.

"Clube da Luta": o violento despertar da
iluminação espiritual
Portanto, nas representações pop do gnosticismo (filmes, animações, animes japoneses, HQs etc.) a gnosis é o mal estar que se torna consciente, possibilitando o autoconhecimento que encontrará a sabedoria interior que dará os instrumentos para retirar os véus da ilusão da realidade.

Essas representações pop da gnosis são bem diferentes do proposto por Aldino, isto é, a gnosis como um benefício proporcionado pela ferramenta da meditação para termos uma maior “clareza profissional e familiar do que queremos”, isso sem falar na melhora de desempenho no trabalho com a maior capacidade de concentração.

Se o estresse e os “sentimentos negativos” decorrente são expressões dessa mal estar na cultura descrito desde Freud, isso significa que a busca do conhecimento universal depositado em nós mesmos dificilmente nos trará uma “clareza profissional”. Certamente esse conhecimento universal entrará em choque com valores e propósitos de instituições e corporações. Em outras palavras, talvez não saibamos o que queremos, mas certamente teremos cada vez mais claro na consciência o que NÃO queremos.

O preço da paz e harmonia

Certamente, como afirma Aldino, meditação e a gnosis resultante trazem a paz e harmonia com nós mesmos, mas disso não decorre em harmonização, melhora de eficácia e performance profissional ou nos afazeres do dia-a-dia. Esse tipo de sabedoria traz um preço: a consciência da inautenticidade dos propósitos e valores das instituições e da sociedade.

Essa defasagem entre as expressões radicais da gnosis no gnosticismo pop e a aproximação do Gnosticismo como técnica de autoconhecimento propõe algumas teses:

(a) Toda Autoajuda é uma Teologia positiva secularizada. Como tal, parte da ideia de que a Verdade está no Todo e o indivíduo, como fragmento desse todo, é incapaz de vislumbrar essa Verdade porque imerso no erro – pecado, auto-engano, má-fé etc. Portanto a Verdade só pode estar em instituições que conectem com esse Todo: Igreja, hierarquias, etc.  Ao contrário, o Gnosticismo parte de uma Teologia Negativa onde o movimento é inverso: qualquer um pode encontrar “Deus” porque Ele já está no interior do indivíduo. Possuímos uma fagulha que nos conecta diretamente com Ele. A verdade não é o Todo. Isso historicamente criou uma dissensão primeiro com a Igreja Católica e, modernamente, com a oposição e o pensamento crítico contra formas de controle de corporações e governos.

(b) A aproximação do Gnosticismo a essas “tecnologias do espírito” da autoajuda faz esquecermos essa oposição entre Teologia Positiva/Negativa. O resultado é o perigoso destino de transformar o Gnosticismo em algo parecido com livros com temas como “A Cabala do Dinheiro”, “A Cabala do Amor” ou “O Tao da Administração”, “O Tao dos Negócios” e assim por diante.

       Essas duas teses resultam em duas hipóteses sobre a fala de Vinicius Aldino que podem ser sintetizadas da seguinte maneira:

(a) Ou estamos diante de um caso de neutralização ou esvaziamento engrendrado pela Indústria Cultural de tudo que há de crítico, virulento e revolucionário no Gnosticismo.

(b) Ou a fala de Vinicius Aldino pode ser um verdadeiro Cavalo de Tróia colocado no interior do ideário da autoajuda: a inserção da bomba de efeito retardado da gnosis que, quando acionada, trará desordem e desestabilização no interior das instituições. Algo parecido com o que Freud disse para Carl Jung ao avistarem o porto de Nova York e a Estátua da Liberdade em 1908: “eles não sabem que trazemos a peste”.
            
             Sinceramente, espero que a segunda hipótese esteja correta.

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