terça-feira, março 29, 2011

Filme "O Primeiro Mentiroso": Uma Fábula Sobre a Mentira e Religião


Embora seja enquadrado dentro do gênero “comédia romântica”, "O Primeiro Mentiroso" (The Invention of Lying, 2009) é o resultado de um poderoso roteiro carregado de humor negro sobre os temas da mentira, amoralidade e religião. Diferente dos parâmetros hollywoodianos, a mentira não é tratada pelo viés moral.  O filme é uma corrosiva fábula sobre um mundo incapaz de mentir não por livre-arbítrio, mas por amoralidade.

No cinema hollywoodiano o tema da mentira sempre foi tratado dentro do campo da moral: a verdade e a honestidade são vistas como virtudes que, no final, sempre acabam se impondo à mentira. Por exemplo, filmes como os do diretor Frank Capra dos anos 30 e 40 onde os heróis virtuosos lutam para que a verdade se imponha à corrupção e a mentira;  comédias como “Muito Louco” ("Crazy People", 1990), estrelado por Dudley Moore sobre a mentira e a honestidade em publicidade; e “O Mentiroso” ("Liar, Liar", 1997) onde Jim Carrey faz um advogado que mente compulsivamente até que, graças ao desejo do seu filho no seu aniversário, é condenado a dizer sempre a verdade, metendo-se em mil enrascadas na profissão para provar que a verdade é a melhor política.

A novidade do filme “O Primeiro Mentiroso” é que ele inverte a questão ao colocar  a mentira no campo da amoralidade. O filme é uma fábula onde em um mundo onde todos falam a verdade não existe o conceito de mentira. “Franqueza”, “honestidade” e “sinceridade” não são bem os termos que possam ser aplicados aos habitantes desse universo fictício. Essas são categorias morais. O problema dos habitantes dessa fábula é que eles são amorais: simplesmente dizem o que lhes vem à mente sem saberem a oposição entre verdade/mentira, moral/imoral. Eles se comportam assim não por uma opção moral (livre arbítrio na escolha entre o certo e o errado). O interessante no filme é que, nesse mundo paralelo, as pessoas assim se comportam por serem seres amorais.


Os diálogos diretos criam situações de típico humor negro chegando próximo ao brutal. Como na sequência em que o protagonista Mark (Ricky Gervais) chega a casa de Anna (Jennifer Garner) para o primeiro encontro. Ela atende a porta e se desculpa pelo atraso,  e fala para Mark que estava se masturbando porque acreditava que aquele encontro seria um fracasso!

Mark é um perdedor nato que trabalha como roteirista para o cinema (não há ficção em um mundo onde não se pode mentir, por isso os filmes são basicamente textos sobre fatos históricos reais lidos por um narrador em tom professoral diante das câmeras). Mark se interessa por Anna, mas em virtude de ser “gordinho com nariz arrebitado” e fracassado financeiramente torna o romance impossível.

As pessoas nesse mundo são tão diretas e verdadeiras que expressam sem pudor seus preconceitos e intolerâncias. Anna até gosta de Mark, mas preocupa-se com sua herança genética. Esse mundo é cruelmente dividido entre vencedores e perdedores (genética e financeiramente falando).

O fracasso financeiro de Mark chega ao limite no momento em que ele é demitido do estúdio de cinema e está prestes a ser despejado de sua casa. Deve 800 dólares de aluguel e só tem 300 na sua conta. Ao chegar ao banco para sacar tudo o que resta é informado pela caixa que o sistema caiu. Ela lhe pergunta quanto tem na conta. Uma ideia vem como um raio à mente de Mark: e se mentisse! Ele diz que tem 800 dólares e a caixa acredita.  Com isso evita ser despejado de sua casa.

Tal como Adão no Paraíso do Gênesis bíblico, Mark morde a maçã, perde a inocência e descobre os prazeres da mentira. A grande sacada do filme é que, ao contrário do moralismo bíblico hollywoodiano, Mark não será punido. Mais que isso, como primeiro mentiroso da história daquele mundo paralelo, será capaz até de criar a primeira religião baseada na mentira.


Religião como racionalização


O argumento do roteiro escrito por Ricky Gervais é instigante ao concordar com a máxima do escritor e poeta irlandês Oscar Wilde: “todo realismo é triste”. O fato de as pessoas serem incapazes de entender o conceito de mentira (é impagável a sequência em que Mark tenta explicar aos amigos como ele mentiu no banco – ninguém entende nada!) não torna o mundo melhor. Todos parecem ser tristes, enfadados, aborrecidos em um mundo onde o império da verdade somente fez dividir o mundo entre vencedores e perdedores, pessoas com herança genética “perfeita” e “imperfeita” (em outros termos, eugenia e preconceito) e onde crianças gordinhas são vítimas de bullying por parte de crianças “vencedoras”.

Apesar da verdade, não há a Verdade. Tudo é amoral e sem sentido. Até o momento em que, sem querer, Mark cria a segunda invenção que vai complementar a mentira: a racionalização.

No leito de morte da mãe no hospital, vendo o desespero dela diante da morte (para onde vamos, para o nada?) Mark mente ao dizer que ela vai para um paraíso maravilhoso, onde todos tem uma mansão e lá encontrará seus entes queridos. Os médicos ouvem e espalham a notícia. Logo dezenas de repórteres estão atrás dele para que explique melhor o que há depois da morte. Cria-se uma comoção mundial e centenas de pessoas param a sua porta à espera de uma resposta de Mark.



Continuando a mentira, Mark criará, (tal qual Moisés no Velho testamento bíblico onde, após uma conversa com Deus, desceu das montanhas com as tábuas dos dez mandamentos) os mandamentos de uma nova religião, mostrada para todos gravados não em tábuas de pedra, mas em caixas de Pizza Hut. Mark criar as bases de uma nova religião baseada na imaginação onde Deus é o responsável por tudo de bom ou de ruim que acontece na vida de todos.

Se a até então a realidade era triste e sem sentido, a partir da revelação de Mark tudo passa a fazer sentido (Hilário! Mark é homenageado com a sua imagem em vitrais de igrejas, segurando as tábuas dos mandamentos em caixas de Pizza Hut).

Isso faz lembrar o conceito de racionalização tal como descrito por Freud. Para ele a Racionalização é o processo de achar motivos lógicos e racionais aceitáveis para pensamentos e ações. É o processo através do qual uma pessoa apresenta uma explicação que é logicamente consistente ou eticamente aceitável para uma atitude, ação, ideia ou sentimento que causa angústia. É uma forma para justificar comportamentos quando, na realidade, as razões para esses atos não são recomendáveis.

Se por um lado a nova religião do “homem do céu” de Mark dá um sentido e alento para o cotidiano, por outro lado acaba servindo de justificativa para todos os preconceitos e intolerâncias resultantes da “franqueza” de todos. Tudo será explicado como se assim “o homem do céu” quisesse. “Vencedores”, “perdedores” e pessoas “geneticamente imperfeitas” são, assim, vistas como um desígnio divino.




Um melancólico humor negro


A fábula proposta por Ricky Gervais é triste e melancólica, dentro de uma narrativa de hilariante humor negro. Gervais chegou ao mainstream com o sucesso da sua série televisava “The Office” na inglaterra, co-escrita e co-dirigida com Stephen Merchant e ainda atuando como o protagonista David Brent . Em Hollywood estrelou como protagonista em filme como “Ghost Town” e esse “O Primeiro Mentiroso”.

É claro que, como filme hollywoodiano, “O Primeiro Mentiroso” é enquadrado dentro do gênero “comédia romântica”.  Provavelmente os produtores do filme forçaram para que o roteiro focasse mais na estória romântica do amor impossível entre Anna e Mark, para suavizar o impactante humor negro crítico de Gervais (por conta disso, o roteiro perde muito sua força na segunda metade do filme).

Mas os elementos desafiadoramente críticos permaneceram: a amoralidade, a religião como instituição racionalizadora e a não-punição do protagonista, mesmo após ter comido a maçã do pecado da mentira. 

Ele continua mentindo compulsivamente até o final. Talvez, o próximo estágio de Mark seria quando ele passasse a acreditar nas próprias mentiras, esquecendo-se o que fora, um dia, a verdade. Bem, aí estaríamos dentro do campo da amoralidade pós-moderna.


Ficha Técnica
  • Título: O Primeiro Mentiroso (The Invention of Lying)
  • Direção: Ricky Gervais e Matthew Robinson
  • Roteiro: Ricky Gervais e Matthew Robinson
  • Elenco: Ricky Vervais, Jennifer Garner, Rob Lowe, Jonah Hill, Jeffrey Tambor
  • Produção: Warner Bro. Pictures, Radar Pictures
  • Distribuição: Universal Home Entertainment
  • País: EUA
  • Ano: 2009

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